terça-feira, 29 de setembro de 2009

Notícias Pedagógicas

A propósito desta notícia (http://medicoexplicamedicinaaintelectuais.blogspot.com/2009/09/aprender-com-imprensa-regional-e-local.html) que MEMI divulga, tenho a comentar o seguinte:
1) O doente, até prova em contrário (e a prova existente é boa: autópsia médico-legal), morreu com enfarte agudo do miocárdio (EAM);
2) O doente, para ter um enfarte, não precisa de responder a nenhuns critérios, ao contrário do defendido pela arguida. Só precisa mesmo é de ter um enfarte; os critérios são o que torna, com base científica de evidence based Medicine, lícito ou não considerar-se o diagnóstico, num número aceitável de casos; é pedagógico dizer-se que, mesmo com base numa "boa prática", se deixam sempre escapar alguns diagnósticos, com consequências de gravidade variável;
3) Acho curiosas várias afirmações da arguida
-Em primeiro lugar, não assumir que o papel dela, ao contrário do pressuposto, não é o de dizer que a patologia (EAM) não é presumível, mas sim excluí-la;
-Em segundo lugar, o de dizer que dores abdominais e vómitos não fazem parte do quadro clínico;
-Em terceiro lugar, o de desvalorizar a excelente sensibilidade e a quase perfeita especificidade da troponina (é esse o marcador laboratorial do qual estão a falar), faltando obviamente saber-se de que valores absolutos da proteína estamos a falar; para quem entende destas matérias, a insuficiência renal só pode levar a uma sobre-estimativa da troponinemia (e da massa cardíaca necrosada), continuando a haver, sempre que ela estiver aumentada, necrose do miocárdio;
-A arguida ainda divide as responsabilidades da alta com um Internista, que defendia que a doente teria um EAM, e não uma pneumonia como ela suspeitava; ora, a pneumonia cursa com consolidação ou "hepatização" do pulmão, facilmente identificável em qualquer autópsia (trata-se de uma alteração muito mais grosseira que, por exemplo, a de um EAM); além do pormenor: a doente teve mesmo um EAM;
-É óbvio que nem o Internista tem autoridade para internar doentes em Cardiologia, nem a Cardiologista tem autoridade para internar doentes em Medicina Interna; o que sucede é que a cardiologista achou que o doente não tinha EAM, e o internista achou que, excluído EAM por quem de direito (e demais patologias por ele próprio), o doente não tinha outros motivos para permanecer no Hospital; acontece que, note-se, tinha mesmo um EAM...;
-A maior parte dos EAM, ou pelo menos boa parte do que chegam ao Hospital a respirar, não estão "instáveis do ponto de vista cardiológico", seja lá o que isso quererá dizer; presumo que signifique que não estava, nem em choque cardiogénico, nem em edema agudo do pulmão, tal como a maioria dos EAM nestas condições, mas enfim...;
-Apesar de toda esta evidência, a arguida continua a insistir que a causa de morte foi, não a que está identificada, mas sim outra, que concerteza terá passado despercebida ao Médico Legista que fez a autópsia, e que por acaso compromete outro colega seu.
Ou seja, caros leitores, o perfeito exemplo de como uma médica não se deveria comportar em tribunal (a acreditar no relato como sendo verosímil, claro está), uma vez que:
-O doente teve um EAM, e morreu por causa do EAM, até prova em contrário (e a prova está na autópsia, a única coisa "contestável" nesta fase);
-O facto de não se ter diagnosticado EAM não é sinónimo de negligência, mas é obviamente um erro, e não há que ter vergonha nenhuma em assumi-lo, desde que se tenha a consciência tranquila, e se tenham feito os procedimentos conformes à legis artis; os familiares querem explicações sobre o sucedido, tratando-se de uma preocupação natural, e legítima neste caso, face ao inesperado trajecto do doente, e ao seu trágico desfecho; ou seja, por aí, nada de anormal, e a colega arguida deste processo ficaria entregue à investigação técnica que certamente decorreu entretanto (aos processos, aos intervenientes, ...), e à decisão do tribunal face ao "erro"; em Medicina, tomam-se decisões, e algumas não são as acertadas, faz parte dos riscos do ofício, e não há nada nem ninguém que consiga remediar isso a 100%; ou seja, todos erramos, podemos é ter sorte nas consequências (nem todos os nossos erros resultam, felizmente, na morte dos doentes);
-O que não é bonito, e de mau prenúncio quanto à tal correcção de procedimentos que terá havido (ou não), é toda essa desinformação cientificamente errada que a colega parece fazer questão de transmitir, e essa tentativa de deixar transparecer perante os julgadores que a culpa da morte do doente é de outro médico, que não ela;
-Portanto, deve ter sido o Internista que não diagnosticou uma pneumonia, que o Médico Legista não observou, mas que ela, enquanto cardiologista, desconfia que o doente tinha; isto apesar do Internista e do Médico Legista terem, respectivamente, achado e confirmado que o doente apresentava um EAM.
É feio, muito feio....

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