sexta-feira, 11 de abril de 2008

O insustentável peso da incompetência

Há uma corja de licenciados em medicina para quem esta profissão é um mero emprego destinado a atingir um fim muito simples: subsistir, de preferência de forma farta. E para atingir esse fim, os escrúpulos tornam-se supérfluos, diria mesmo incómodos. Há já algum tempo que me sinto incomodado por esta putrefacção latente que corrompe a carne e os ossos da arte científica (ou da ciência artística) que é a nobre profissão médica. Mas confesso que durante muito tempo atribuí esta minha tendência para a maledicência à candura do principiante idealista que eu era. É possível - pensava - que um dia também eu venha a afundar-me no pântano da incompetência em que, pouco a pouco, se vão cometendo deslizes cada vez menos justificáveis, nunca punidos, raramente repreendidos e que conduzem inexoravelmente à condição de animal a abater (é pelo menos assim que vejo alguns internistas séniores). Ao ignorar a qualidade e a falta dela, o sistema reforça perniciosamente a inépcia. Mas agora, que já não sou tão inexperiente - nem tão imbecil - quanto há uns anos atrás, vejo que estava enganado. Há de facto médicos intrinsecamente sem escrúpulos. Não estão nisto pela profissão e recorrem sempre à lei do mínimo esforço - que em medicina, como noutras profissões com consequências críticas, pode saldar-se por resultados desastrosos, o mais nocivo dos quais será provavelmente o doente emitir prematuramente o último suspiro. Mas no país do fado (do Latim, fatum [destino]), nada mais fácil do que justificar uma morte. "Estava com uma infecção no sangue..." "Deve ter sido trombose..." E por vezes estas explicações fazem-se acompanhar do patético "Já era muito idoso...", ponteado com um encolher de ombros e uma breve contracção dos músculos risorii - a simular uma compaixão que não existe e que nunca sequer fez um esforço para nascer. Pense bem, caro leitor: acha que é significativa a franja populacional portuguesa que se atreveria a questionar tais explicações? Pois... Também não creio. E para os familiares um pouco mais diferenciados, é sempre possível recorrer a um vocabulário mais técnico - e hermético. A verdade é que para uma pessoa que está de fora da profissão torna-se difícil, por muitos motivos, perceber quem é competente e quem o não é. Mas voltando ao assunto que nos ocupa, penso que a abundância de médicos incapazes no nosso país merece uma análise um pouco mais detalhada. Uma das suas causas foi a deficiente ontogénese de muitos médicos que iniciaram o seu desenvolvimento no pós-25 de Abril - muitos eram certamente jovens promissores mas alguns - demasiados! - eram pura e simplesmente aproveitadores que embarcaram clandestinamente num navio transitoriamente à deriva. Numa época em que Portugal estava relativamente isolado do resto do Mundo, essa distribuição bimodal não era muito evidente, mas à medida que o país foi tomando consciência de si próprio , foi também percebendo o seu lugar na classificação geral. Fomos tomando consciência daquilo que os outros consideram qualidade e alguns de nós deram-se ao trabalho de aferir o que por cá se faz. E isso contribuiu, silenciosamente, para a melhoria da saúde em Portugal. Concomitantemente, os cancros que infiltraram anteriormente a nossa profissão foram permanecendo, foram-se incrustando sobre um substrato que permitiu a sua sobrevivência. Trata-se, no fundo, de puro parasitismo. Essa sarna da profissão médica - que a seu modo também provoca intenso prurido - manteve-se viva até aos nossos dias e é sobretudo ela que o meu caro leitor pode culpabilizar pelas ignomínias que muitos doentes vivem diariamente nos hospitais deste paísito. Creio que parte da solução deve provir da própria classe médica, cujos membros mais informados devem fazer um esforço genuíno no sentido de melhorar a qualidade dos serviços de saúde prestados - nem que isso implique comprometer interesses há muito enraizados. Tanto mais que nos encontramos actualmente numa conjuntura em que a escória dos hospitais é também a que aufere a maior remuneração - o seu afastamento resolveria assim dois problemas de uma só vez: melhoria da qualidade dos serviços de saúde e redução considerável dos custos. Por hoje, não me alongo mais. Deixo para futuros posts o aprofundamento da reflexão acerca desta problemática, esperançado de que a minha participação neste Blog, que hoje enceto, seja uma verdadeira catarse e me leve a melhorar um pouco a bela profissão médica e a saúde da população.

2 comentários:

Anónimo disse...

Preocupante. Enfim, a esperança está nos médicos que continuam a rumar contra a maré e que conseguem assim transmitir essa atitude às novas gerações, para que sejam estas o vector de mudança em vez de mais do mesmo..

Placebo disse...

Bem vindo, Tábula Rasa :)

E não abrandes com essa qualidade de escrita, tão séria quanto contundente!